Conheci o Bode Cheiroso quando eu mal havia chegado ao Recife, pelas mãos de uma tia, para os estudos primários na Escola Adventista. Primeiro, pelo fedor com que ele já se anunciava aos espíritos desprevenidos à distância de centenas de metros.
Aproximávamos, a pé, eu e uma prima querida, do pátio da Estação de Trem de Cavaleiro, quando o mau cheiro me veio às ventas com o efeito de um tabefe. Minha companheira de escola e caminhada tapou o nariz, olhou-me com uma cara engraçada e, antes que eu dissesse “não fui eu”, gritou para mim: “Corre que lá vem o Bode!”. Saiu na frente enquanto eu a perseguia.
Três ou quatro dias depois, o mesmo cheiro dos infernos, desta vez, porém, à saída da aula, sem que nenhum de nós atinássemos a direção de onde provinha, espalhado que estava por todo canto. Os alunos da Professora Lúcia, às gargalhadas, repetiam o aviso: “Lá vem Cheiroso!”.
E assim foi até o dia em que eu, desasnado o suficiente para ir à escola sozinho, decidi aguardar na esquina a passagem do bicho. Não há exagero na afirmativa de que a aparência lhe fazia justiça à catinga. Grande, peludo e sujo, percorria o bairro inteiro sem que ninguém o molestasse.
As histórias a seu respeito me chegaram aos poucos. Disseram-me que Cheiroso roubava bananas no Mercado Público antes que os vendedores tivessem tempo de recolhê-las e que ganhava comida em bares, padarias e lanchonetes de comerciantes esperançosos de que dali saísse o mais rapidamente possível, de modo a não espantar a freguesia.
No início dos anos de 1960, de volta à Paraíba, eu soube que Cheiroso obtivera a maior votação para a Câmara dos Vereadores de Jaboatão dos Guararapes, na Área Metropolitana do Recife. E que, desde então, os vendedores de banana, por diversão, anotavam na caderneta de fiados aquilo que o bicho consumia para cobrança da conta ao Erário Municipal. Eram assuntos dos quais me dava notícia a Rádio Jornal do Commercio, aquela que falava para o Mundo.
Debochado, o povaréu também comentava – à boca miúda, evidentemente – que o Bode fora o único político a escapar das cassações promovidas, a três por quatro, pelo Golpe Militar de 1964, em Jaboatão dos Guararapes, cidade que a verve popular apelidava de “Moscouzinho”.
Poucos souberam do dono do Bode Cheiroso (um policial militar) e a idade com que morreu. Por falar nisso, teve uma morte trágica. Foi atropelado pelo trem da madrugada, em princípios de 1970, já quase cego e surdo. Houve quem propusesse cadeia para o maquinista, luto oficial por três dias, bandeiras a meio mastro e ponto facultativo no dia do enterro.
Ah, sim. O bicho também foi homenageado com um coco composto e gravado por Alventino Cavalcante. Eis o refrão: “Olha, como é que pode/ me diga, doutor/ o diabo do bode ser vereador”...
Nestes tempos bicudos, passei a lembrar, com certa frequência, do Bode Cheiroso. Ele deve ter prestado melhores serviços ao eleitorado do que os hoje oferecidos por sabida parcela da classe política. Quando menos, alegrava um povo diariamente espoliado. Não se sabe de assalto seu aos cofres públicos e o maior desvio de conduta então cometido dizia respeito à falta do banho.