O apresentador do telejornal impostou a voz, para dar ênfase à notícia: “Agora é lei!”. Referia-se à recém sancionada lei do Estado de São Paulo que proíbe o uso de telefones celulares nas escolas.
Em outro telejornal, ao final da matéria, o apresentador celebrou: “Obrigado, Felipe, por essa BOA notícia!” (Para assistir,
Que maravilha! Pelo menos em São Paulo, o sistema educacional tem tudo para dar certo a partir de agora. Afinal o que atrapalha é o telefone celular!
Claro que estou ironizando. Admito que uma lei proibindo o uso de telefones celulares nas escolas seja inspirada pelas melhores intenções, mas tenho dúvida se fará grande diferença no aprendizado dos alunos.
Repito: tenho dúvida a esse respeito. Não sendo a educação minha área de especialidade, não irei além da dúvida. Mas também não me furtarei de fazer algumas reflexões sobre o conteúdo da lei, especialmente do ponto de vista jurídico, área na qual me sinto mais à vontade.
Nessa linha, fui ao Diário Oficial do Estado de São Paulo em busca do texto normativo. E qual não foi a minha surpresa ao descobrir que a Lei 18.058, de 5/12/2024, não é exatamente uma novidade, pois altera outra, de 2007, de número 12.730, que já proibia o uso do celular “nos estabelecimentos de ensino do Estado, durante o horário das aulas”.
O que mudou, então, foi que a proibição agora se estende a “outros dispositivos eletrônicos” e alcança “alunos nas unidades escolares da rede pública e privada de ensino, no âmbito do Estado de São Paulo”, sem se limitar ao horário das aulas.
Outros dispositivos eletrônicos, ainda segundo a Lei, são “quaisquer equipamentos que possuam acesso à internet, tais como celulares, tablets, relógios inteligentes e outros dispositivos similares”.
Ficamos assim então: nas escolas de São Paulo, os estudantes estão proibidos de utilizar quaisquer equipamentos que lhes proporcionem acesso à internet; e não apenas durante as aulas, mas por todo o tempo que permanecerem no estabelecimento de ensino.
Há exceções, claro. Por razões pedagógicas, assim como para alunos com deficiência ou alguma condição de saúde que requeira esse auxílio.
No âmbito da regra geral, como hoje em dia ninguém mais sai de casa sem levar seu celular, parece que a ideia é que o estudante, ao entrar na escola, entregue seu aparelho para ser guardado por um representante do estabelecimento de ensino, recebendo-o de volta ao sair. É o que dá para se deduzir do caput art. 2º da Lei de 12.730/2007, com a nova redação: "Os estudantes que optarem por levar seus celulares e outros dispositivos eletrônicos para as escolas deverão deixá-los armazenados, de forma segura, sem a possibilidade de acessá-los durante o período das aulas, assumindo a responsabilidade por eventual extravio ou dano, caso exerçam essa opção".
A ideia talvez seja boa. Mas fiquei intrigado com duas coisas: a primeira, é que a lei estabelece que a escola não se responsabiliza por eventual perda ou dano sofrido pelo objeto cuja guarda lhe é confiada; quanto à segunda, não encontrei na lei qualquer sanção - ou seja, nenhuma penalidade (administrativa, claro!) - ao estudante que deixe de respeitar a proibição, mantendo, por exemplo, o equipamento em sua mochila, e utilizando-o de maneira oculta.
Quanto ao primeiro ponto, parece-me que as escolas não poderão se eximir da responsabilidade por celulares que venham a ser perdidos ou danificados, por força da responsabilidade civil do Estado, prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal. É assunto que pode chegar aos tribunais.
Quanto ao segundo ponto, se a lei não regula a aplicação de penalidades, como advertência, multa e/ou apreensão do objeto (exemplos que não se excluem entre si), a conduta tida como ilegal fica sem sanção. A lei prevê, é fato, regulamentação por ato do Poder Executivo, mas, se a lei estabelece a proibição, deveria traçar os limites das consequências de seu descumprimento. Não havendo previsão nesse sentido, é possível que, em caso de descumprimento da regra, tudo resulte na adoção de alguma medida disciplinar definida pela própria escola.
Não que eu esteja aqui interessado na punição de ninguém. Pelo contrário. O que me leva a escrever essas reflexões é a perplexidade de ver o uso de um objeto lícito ser tornado ilícito, provavelmente pelo mau uso de alguns.
Digo isso e lembro de quando leis municipais proibiram o uso de celulares dentro de instituições bancárias. A intenção era das melhores: evitar que assaltantes passassem informações para comparsas, que assaltavam clientes do lado de fora da agência. Hoje, ninguém fala mais nisso, porque pouco se vai a uma agência bancária.
No fim das contas, voltando aos celulares nas escolas, espero estar completamente equivocado nessas minhas primeiras impressões a respeito do assunto. Espero que a nova lei seja um instrumento de grande valia para a melhoria na qualidade do ensino nas escolas de São Paulo, servindo de exemplo para todo o país.
Espero, enfim, no sentido de ter esperança, não no sentido de aguardar um fato previsível ou pelo menos provável.
Porque, meu sentimento é de que estamos diante de mais um caso em que as pessoas deveriam resolver as coisas por si mesmas, sem a menor necessidade de uma legislação a respeito. Porque entendo que não seria necessária nenhuma lei nova para dar ao professor a autoridade de determinar que telefones celulares sejam desligados durante a aula, inclusive admitindo exceções, quando fosse o caso. Que pais deveriam ter a segurança necessária para suspender suas comunicações com os filhos no período das aulas, sem ter crises de ansiedade por isso. Que os estudantes tivessem a disciplina necessária para esperar o momento certo para usar seus celulares, esses aparelhos incríveis, que mudaram a vida de cada um de nós, e o destino da humanidade, para sempre.
Sim, sei que é um tanto utópico esperar que as pessoas resolvam por si mesmas seus problemas, deixando para o Estado apenas o mínimo necessário.
O que se tem visto nas últimas décadas é o Estado ocupar todos os espaços de nossas vidas, não apenas se agigantando, mas também se fazendo fluido, para penetrar inexoravelmente em cada fresta de relações que poderiam ser apenas pessoais.
Bem, quanto a esse último parágrafo, penso que talvez ainda seja possível sonhar com uma mudança de rumo para a humanidade. Como diz aquela canção dos Engenheiros do Hawaii, “quem sabe, quem sabe, talvez”
Juiz Federal. Também Poeta, Escritor e Compositor
13 de dezembro de 2024